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PROJETO PAIDEIA
(SITE e BLOG DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA DO COLÉGIO ESTADUAL DO PARANÁ)
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Diretriz Curricular de Filosofia (SEED, 2008)
(trechos)
[...] Constituída como pensamento há mais de 2600 anos, a Filosofia, que tem a sua origem na Grécia antiga, traz consigo o problema de seu ensino a partir do embate entre o pensamento de Platão e as teorias dos sofistas. Naquele momento, tratava-se de compreender a relação entre o conhecimento e o papel da retórica no ensino. Por um lado, Platão admitia que, sem uma noção básica das técnicas de persuasão, a prática do ensino da Filosofia teria efeito nulo sobre os jovens. Por outro lado, também pensava que se o ensino de Filosofia se limitasse à transmissão de técnicas de sedução do ouvinte, por meio de discursos, o perigo seria outro: a Filosofia favoreceria posturas polêmicas, como o relativismo moral ou o uso pernicioso do conhecimento.
A preocupação maior com a delimitação de metodologias para o ensino de Filosofia é garantir que os métodos de ensino não lhe deturpem o conteúdo. A ideia de que não existem verdades absolutas em conteúdos como, por exemplo, moral e política, é tese defendida com frequência por filósofos. Ocorre que essa discussão, ao ser levada para o ensino, torna inevitável o estranhamento que a ausência de conclusões definitivas provoca nos estudantes. Essa é uma característica da Filosofia que, como lição preliminar a qualquer conteúdo filosófico, deve ser bem compreendida. Russell (2001, p. 148), em Os Problemas da Filosofia, respondeu a essa polêmica:
O valor da filosofia, em grande parte, deve ser buscado na sua mesma incerteza. Quem não tem umas tintas de filosofia é homem que caminha pela vida fora sempre agrilhoado a preconceitos que se derivam do senso-comum, das crenças habituais do seu tempo e do seu país, das convicçõesvque cresceram no seu espírito sem a cooperação ou o consentimento de uma razão deliberada. O mundo tende, para tal homem, a tornar-se finito, definido, óbvio; para ele, os objectos habituais não erguem problemas, e as possibilidades infamiliares são desdenhosamente rejeitadas. Quando começamos a filosofar, pelo contrário, imediatamente caímos na conta de que até os objectos mais ordinários conduzem o espírito a certas perguntas a que incompletissimamente se dá resposta. A filosofia, se bem que incapaz de nos dizer ao certo qual venha a ser a verdadeira resposta às variadas dúvidas que ela própria evoca, sugere numerosas possibilidades que nos conferem amplidão aos pensamentos, descativando-nos da tirania do hábito. Embora diminua, por consequência, o nosso sentimento de certeza no que diz respeito ao que as coisas são, aumenta muitíssimo o conhecimento a respeito do que as coisas podem ser; varre o dogmatismo, um tudo-nada arrogante, dos que nunca chegaram a empreender viagens nas regiões da dúvida libertadora; e vivifica o sentimento de admiração, porque mostra as coisas que nos são costumadas num determinado aspecto que o não é.
Diante dessa perspectiva, a história do ensino da Filosofia, no Brasil e no mundo, tem apresentado inúmeras possibilidades de abordagem, dentre as quais destacam-se, segundo Ferrater Mora (2001):
• a divisão cronológica linear: Filosofia Antiga, Filosofia Medieval, Filosofia Renascentista, Filosofia Moderna e Filosofia Contemporânea, etc.;
• a divisão geográfica: Filosofia Ocidental, Africana, Filosofia Oriental, Filosofia Latino-Americana, dentre outras, etc.;
• a divisão por conteúdos: Teoria do Conhecimento, Ética, Filosofia Política, Estética, Filosofia da Ciência, Ontologia, Metafísica, Lógica, Filosofia da Linguagem, Filosofia da História, Epistemologia, Filosofia da Arte, etc.
Ao conceber o ensino de Filosofia por meio de conteúdos estruturantes, estas Diretrizes não excluem, outrossim, absorvem as divisões cronológicas e geográficas. Cabe ressaltar que abordagens por divisão geográfica podem apresentar dificuldades de naturezas diversas, sobretudo no Ensino Médio.
Por exemplo, o trabalho com a chamada filosofia oriental e a filosofia africana demanda esclarecimentos preliminares. O termo filosofia oriental é tomado, muitas vezes, de forma excessivamente ampla. Não se pode dar tratamento tão genérico a essa complexa dimensão da Filosofia que se estende da antiguidade à contemporaneidade e compreende o pensamento elaborado numa vasta zona geográfica que abrange Síria, Fenícia, Índia, China, Japão e vários outros países. Além disso, há que se considerar o pensamento árabe e o judaico, comumente vinculados à filosofia ocidental. Mas, ainda que se observem essas divisões, seria preciso enfrentar outros problemas.
Um dos maiores problemas é que, quando se tenta desenvolver seu conteúdo, é preciso abandonar frequentemente o tipo de pensamento propriamente filosófico e se referir antes ao pensamento religioso ou até mesmo às formas mais gerais da cultura correspondente. Quando essa referência constitui o horizonte cultural, histórico ou espiritual dentro do qual pode ser inserida a Filosofia, a desvantagem a que aludimos não é considerável; mais ainda, tal referência pode ajudar a compreender melhor o pensamento filosófico que se trata de esclarecer. Porém, quando o horizonte em questão substitui a Filosofia de modo excessivamente radical, corre-se o risco de perdê-la de vista completamente (FERRATER MORA, 2001, p. 1103).
De acordo com o mesmo autor, o momento que marcou o renascimento da discussão sobre a existência de uma filosofia africana foi o livro do missionário Plácido Tempels - La philosophie bantoue (1945). Nessa obra, ele defende uma filosofia africana baseada não somente na escrita, mas também na linguagem oral, ao tomar por base provérbios, mitos e crenças, o que a torna mais viva se comparada à filosofia ocidental.
No entanto, se a filosofia africana traz como vantagem a ideia de que o ser é dinâmico, dotado de força – concepção essa que aparece também em algumas filosofias ocidentais –, é preciso considerar que a sua fundamentação exclusiva na linguagem oral, ainda que pareça interessante, acaba por apresentar-se como uma fragilidade, evidenciada pela dificuldade com o idioma e também pela carência de bibliografia. Por essa razão, esse conteúdo não está relacionado entre os que compõem os conteúdos estruturantes de Filosofia, podendo, todavia, ser tratado na qualidade de conteúdo básico. O professor, dada a sua formação, sua especialização, suas leituras, terá a liberdade para fazer o recorte que julgar adequado e pertinente. Além disso, deve estar atento às demandas das legislações específicas referentes à inclusão e à diversidade.
Nestas Diretrizes, opta-se pelo trabalho com conteúdos estruturantes, tomados como conhecimentos basilares, que se constituíram ao longo da história da Filosofia e de seu ensino, em épocas, contextos e sociedades diferentes e que, tendo em vista o estudante do Ensino Médio, ganham especial sentido e significado político, social e educacional.
A amplitude da Filosofia, de sua história e de seus textos desautoriza a falsa pretensão do esgotamento de sua produção, seus problemas, sua especificidade e complexidade. Por reconhecer essa condição, as Diretrizes fazem a opção pelos seguintes conteúdos estruturantes: Mito e Filosofia; Teoria do Conhecimento; Ética; Filosofia Política; Filosofia da Ciência e Estética.
A escolha desses conteúdos não significa, porém, que as Diretrizes Curriculares excluam a possibilidade de trabalhar com a história da filosofia. Pelo contrário, elas partilham a ideia de que sem uma consideração histórica dos temas filosóficos, a filosofia corre o risco de tornar-se superficial. No entanto, o que essas Diretrizes Curriculares desencorajam é a organização meramente cronológica e linear dos conteúdos.
A história da filosofia e as ideias dos filósofos que nos precederam constituem, assim, uma fonte inesgotável de inspiração e devem alimentar constantemente as discussões realizadas pelo professor e pelos estudantes em sala de aula.
Os problemas, as ideias, os conceitos e os conteúdos estruturantes devem ser desenvolvidos, portanto, de tal forma que os diversos períodos da história da filosofia e as diversas maneiras através das quais eles discutem as questões filosóficas sejam levados em consideração.
Ao examinar a Filosofia Antiga, por exemplo, percebe-se com facilidade que ela se caracteriza, inicialmente, pela preocupação com as questões de ordem cosmológica, isto é, com a exploração das perguntas relativas à natureza e ao seu ordenamento. Posteriormente, ela amplia seus horizontes de discussão e inclui investigações sobre a condição humana.
Na Idade Média, a Filosofia era fortemente marcada pelo teocentrismo, pensamento de características muito diferentes das que prevaleciam no período anterior.
A desestruturação do Império Romano foi concomitante ao crescimento da Igreja como poder eclesiástico, fundamentado nas teologias políticas que foram elaboradas pelos teóricos cristãos. A função dessas teologias políticas era a ordenação, a hierarquização e o controle da sociedade, sob os auspícios da lei divina. Nesse contexto, a filosofia, retirada do espaço público, passa a ser prerrogativa da Igreja.
O medievo é, assim, marcado pela inspiração divina da Bíblia, pelo monoteísmo, pelo criacionismo, pela ideia do pecado original, pelo conceito cristão de amor (ágape) e por uma nova concepção de Homem, cuja essência encerra a condição de igualdade como criatura divina. A Filosofia da Idade Média, nos seus dois grandes períodos, Patrística (séc. II ao VIII) e Escolástica (séc. IX ao XIV), trata basicamente:
do aperfeiçoamento dos instrumentos lógicos para melhor compreensão dos textos bíblicos e dos ensinamentos dos Padres da Igreja. A razão é posta predominantemente em função da fé, ou seja, a Filosofia serve à teologia [...] não basta crer: é preciso também compreender a fé (REALE, ANTISERI, 2003, p. 125).
Na modernidade, a busca da autonomia da razão e da constituição da individualidade se confronta com os discursos abstratos sobre Deus e sobre a alma, substituindo-os, paulatinamente, pelo pensamento antropocêntrico. A Filosofia declara sua independência da Teologia e os pensadores passam a tratar principalmente de questões filosófico-científicas (Racionalismo, Empirismo, Criticismo). O homem descobre sua importância ao compreender as lógicas da natureza, da sociedade e do universo. Ser moderno significa valorizar o homem (antropocentrismo); não aceitar passivamente o critério da autoridade ou da tradição; valorizar a experimentação; separar os campos da fé e da razão; confiar na razão, que se bem empregada permite o conhecimento objetivo do mundo com benefícios para o homem.
A filosofia contemporânea é resultado da preocupação com o homem, principalmente no tocante à sua historicidade, sociabilidade, secularização da consciência, o que se constata pelas inúmeras correntes de pensamento que vêmconstituindo esse período.
A partir do final do século XIX, a Filosofia é marcada pelo pluralismo de ideias, o que permite pensar de maneira específica cada um dos conteúdos estruturantes apresentados nestas Diretrizes. Ainda que os problemas pensados hoje também tenham se apresentado, anteriormente, como problemas, a atividade filosófica deve considerar as características e perspectivas do pensamento que marcam cada período da história da Filosofia.
Evidentemente, cada processo de escolha determina ausências e toda ausência gera questionamento. Por que não adotamos um percurso cronológico segundo a história da Filosofia? Ora, não se trata de abandonar a história da Filosofia, pois a opção por conteúdos estruturantes compreende também o trabalho com os textos clássicos dos filósofos. Trata-se de garantir que o ensino de filosofia não perca algumas características essenciais da disciplina, como por exemplo, a capacidade de dialogar de forma crítica e mesmo provocativa com o presente.
As experiências com abordagem estritamente cronológica e linear não costumam favorecer esse necessário diálogo. Ainda, importa destacar que os currículos dos cursos de graduação em Filosofia que trabalham com a disciplina História da Filosofia não se restringem a essa abordagem.
[...]
CONTEÚDOS ESTRUTURANTES
Conteúdos estruturantes são conhecimentos basilares de uma disciplina, que se constituíram historicamente, em contextos e sociedades diferentes, mas que neste momento ganham sentido político, social e educacional, tendo em vista o estudante de Ensino Médio.
Estas Diretrizes Curriculares propõem a organização do ensino de Filosofia por meio dos seguintes conteúdos estruturantes:
• Mito e Filosofia;
• Teoria do Conhecimento;
• Ética;
• Filosofia Política;
• Filosofia da Ciência;
• Estética.
Tais conteúdos estruturantes estimulam o trabalho da mediação intelectual, o pensar, a busca da profundidade dos conceitos e das suas relações históricas, em oposição ao caráter imediatista que assedia e permeia a experiência do conhecimento e as ações dela resultantes.
Dada a sua formação, sua especialização, suas leituras, o professor de Filosofia poderá fazer seu planejamento a partir dos conteúdos estruturantes e fará o recorte – conteúdo básico – que julgar adequado e possível. Por exemplo: para trabalhar os conteúdos estruturantes Ética e/ou Filosofia Política, o professor poderá fazer um recorte a partir da perspectiva da Filosofia latino-americana ou de qualquer outra, tendo em vista a pluralidade filosófica da contemporaneidade. Importante é que o ensino de Filosofia se dê na perspectiva do diálogo filosófico, sem dogmatismo, niilismo e doutrinação, portanto sem qualquer condicionamento do estudante para o ato de filosofar.
O trabalho com os conteúdos estruturantes não exclui, de forma alguma, a história da Filosofia nem as perspectivas que aqui denominamos geográficas.
Os conteúdos estruturantes fazem parte da História da Filosofia e podem ser trabalhados em diversas tradições, como na Filosofia europeia, na ibero-americana, na latino-americana, na norte-americana, na hispano-americana, entre outras.
Notadamente, Filosofia é o espaço da crítica a todo conhecimento dogmático, e, por ter como fundamento o exame da própria razão, não se furta à discussão nem à superação das filosofias de cunho eurocêntrico.
Na perspectiva dos conteúdos escolares como saberes, o termo conteúdo não se refere apenas a fatos, conceitos ou explicações destinados aos estudantespara que estes conheçam, memorizem, compreendam, apliquem. Os conteúdos estruturantes não devem ser entendidos isoladamente, de modo estanque, sem comunicação. Eles são dimensões da realidade que dialogam entre si, com as ciências, com a arte, com a história, com a cultura; enfim, com as demais disciplinas. Leopoldo e Silva, ao tratar da relação intra e interdisciplinar, pergunta: qual seria o papel da Filosofia no currículo do Ensino Médio?
A Filosofia aparece como [...] lugar e instrumento de articulação. [...] realiza o trabalho de articulação cultural. Pensar e repensar a cultura não se confunde com compatibilização de métodos e sistematização de resultados; é uma atividade autônoma e crítica. Não devemos entender que a Filosofia está no currículo [...] em função das outras disciplinas, quase num papel de assessoria metodológica. [...] A Filosofia tem a função de articulação cultural e, ao desempenhá-la, realiza também a articulação do indivíduo enquanto personagem social, se entendermos que o autêntico processo de socialização requer consciência e o reconhecimento da identidade social e uma compreensão crítica da relação homem-mundo (LEOPOLDO E SILVA, 1992, p. 162).
Além disso, outro problema no ensino da Filosofia no Ensino Médio diz respeito àquilo que se pretende ensinar e como desenvolver esse ensino. A escola habituou o estudante a identificar a aprendizagem com a aquisição de conteúdos estáveis de conhecimento, acumulados progressivamente.
Muitos concursos vestibulares reforçam essa prática, com seus programas de conteúdos cuja aprendizagem é medida por meio de provas. Com a inclusão da Filosofia nos concursos vestibulares, há que se ter preocupação em não transformála apenas em alguns conhecimentos contidos nessa ou naquela escola filosófica, nessa ou noutra doutrina, nesse autor ou em outro.
Embora exista a cautela de não petrificar os conteúdos filosóficos, do ponto de vista didático-pedagógico, considera-se que o ensino de qualquer das disciplinas do currículo escolar não pode prescindir de conteúdos objetivamente mediadores da construção do conhecimento. Por isso, o currículo de Filosofia coloca-se frente a duas exigências que emergem da fundamentação desta proposta:
• o ensino de Filosofia não se confunde com o simples ensino de conteúdos;
• como disciplina análoga a qualquer outra, tem nos seus conteúdos elementos mediadores fundamentais para que possa desenvolver o caráter específico do ensino de Filosofia: problematizar, investigar e criar conceitos.
Estas Diretrizes Curriculares, ao procurarem superar a concepção enciclopédica da Filosofia, não desvalorizam os textos que possam ser trabalhados ao longo do percurso filosófico. A aprendizagem de conteúdos por meio de textos está articulada necessariamente à atividade reflexiva do sujeito, que aprende enquanto interroga e age sobre sua condição. O ensino de Filosofia não se dá no vazio,no indeterminado, na generalidade, na individualidade isolada, mas requer do estudante compromisso consigo, com o outro e com o mundo. Como mediadores do ensino de Filosofia, os conteúdos devem estar vinculadosà tradição filosófica, de modo a confrontar diferentes pontos de vista e concepções,para que o estudante perceba a diversidade de problemas e de abordagens. Num ambiente de investigação, análise e descobertas podem-se garantir aos educandosa possibilidade de elaborar, de forma problematizadora, suas próprias questõese tentativas de respostas. Com esse objetivo, estas Diretrizes buscam justificare localizar cada conteúdo estruturante e indicam possíveis recortes a partir dosproblemas filosóficos com os quais os estudantes podem se deparar. [...]
Fonte: SEED. Diretrizes Curriculares da Educação Básica. Filosofia. 2008.
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